João nasceu. Na maternidade pública, do ventre de sua jovem mãe para as mãos do esforçado médico. Foi dia de festa e alegria para a família! João, orgulho do papai, amor da mamãe, coisa mais fofa das titias, foi levado pra casa, para seu berço de madeira no quarto com os dois irmãos.
No mesmo dia, em uma dessas coincidências que só Deus explica, nascia Paulinho. Do belo hospital, o melhor que puderam pagar, saia Paulo Ferreira, o filhão, campeão, que nasceu pra brilhar. Será médico ou advogado, terá estudo, os pais planejaram tudo. Chegou em casa, um quarto azul, um lindo berço, as tias apertando as bochechas – que fofo! Isso nunca muda.
Não sabiam os dois, mas estavam destinados um ao outro.
Crescia o Joãozinho em sua casa de reboco, tijolos aparentes, na encosta do morro. Brincava na rua de peão, de bolinha de gude e com a bola de capotão. O pai voltava tarde pra casa. Era trabalhador, honesto, servente de pedreiro, construía casas para os outros morarem. Herói do pequeno: quero ser pedreiro quando crescer! – dizia. Até que um dia, visitando a obra, o menino perguntou:
– Papai, porque nossa casa num é bonita como essa?
– Essa casa num é pra gente! Os moços que moram aqui são gente diferente, estudados e inteligentes, gente melhor que a gente. Num é casa pra gente simples como a gente vir morar. Estuda, meu filho, prum dia cê chegar lá! – disse o pai.
Joãozinho não achou justo: ninguém é melhor que o papai! E, de fato, ninguém era.
Paulo Ferreira, o Paulinho, era um bom aluno na escola em que estudava. Tinha quadra, piscina, natação aos sábados e aulinhas de inglês. Era educado, levava palmadas se aprontasse, comia verduras no almoço – espinafre pra ficar fortinho. Tinha um Super Nintendo e chamava os amiguinhos pra jogar Mario e comer pão pullman com requeijão. Como era gostoso! Bom tempo esse de ser criança! Certa vez, seu pai, que chegava as seis, trouxe um boneco para ele brincar.
– Obrigado, papai! Como você conseguiu esse bonequinho?
– Papai trouxe da loja de brinquedos e pagou com o dinheiro suado de trabalhar! – respondeu o pai.
Paulinho achou justo: ninguém é melhor que o papai! E, de fato, ninguém era.
A mãe do João, filha da vó Neide, era empregada na casa da Dona Marlene. Lavava, passava, limpava, passeava os cãozinhos. Fazia comida, cuidava dos meninos, pegava as sete e saia as oito, do centro da cidade, pra tomar o trem. Uma noite, chegou em casa e deu beijo no Joãozinho, que perguntou:
– Mamãe, porque você cuida da casa dos outros, e num vem ninguém cuidar da nossa?
– Filho, meu anjo, com o dinheiro que eu ganho mal dá pra comprar arroz, fubá e leite. Dona Marlene é diferente, estudada e inteligente, gente melhor que a gente. Empregada num é coisa pra gente simples como a gente, num dá pra mamãe pagá. Estuda, meu filho, prum dia cê chegar lá! – respondeu a mãe.
Joãozinho não achou justo: ninguém é melhor que a mamãe! E, de fato, ninguém era.
Às cinco era hora do lanchinho, hora de subir do parquinho, hora do Paulinho parar de brincar. Bisnaguinha, toddynho, geléia e suco de maracujá. Mordidas após mordida, vendo desenho na TV a cabo antes da novela. Depois, foi fazer lição de matemática, aritmética básica do ensino fundamental.
– Mamãe, vem me ajudar? Quanto é dois mais dois? Não sei somar!
– Claro, filhote, um mais um são dois, dois mais dois são quatro, é fácil, vou te ensinar! – e sentou pra explicar.
Paulinho achou justo: ninguém é melhor que a mamãe! E, de fato, ninguém era.
João e Paulo, nascidos no mesmo dia, na mesma cidade, viviam em mundos completamente diferentes.
Joãozinho tinha só uma certeza na vida, a de que o mundo era injusto. Aprendeu desde cedo que moleque de pé no chão não pode ter o que os outros meninos tem. Que o trabalho é duro, a vida é dura, as vacas magras, as águas turvas…
Sabia que estudar era a saída, mesmo quando na escola não tinha professor pra ensinar. Tentou ler em casa, era difícil se concentrar, não sabia nem por onde começar. Queria ter nascido menino gênio, igual um que viu na TV. Assim, ia conseguir mudar de vida, ter aquilo que queria e comprar uma casa bonita pro seu pai.
Paulinho tinha só uma certeza na vida, a de que o mundo era justo. Aprendeu desde cedo que para ter tudo o que sempre quis bastava esforço e determinação. Que o trabalho é nobre, a vida é bela, as mesas fartas, as águas límpidas…
Sabia que estudar era o caminho, e na sua escola ele aprendia tudo que precisava para passar no vestibular. Universidade pública é concorrida, mas se não passasse, ele sabia, podia ir pra particular. Queria ter nascido menino gênio, igual um que viu na TV. Assim, ia conseguir um doutorado, ser reconhecido, viajar pra França e seu pai ia se orgulhar.
O tempo foi passando, e João foi ficando amargo, foi se entristecendo e se sentia fraco… Na adolescência, aprendeu que alguns tomavam a força aquilo que queriam ter. Esses sim, eram fortes, espertos e cheios de vida. Não abaixavam a cabeça para o mundo, desafiavam a ordem, desobedeciam as leis. Leis que não protegeram João das injustiças que sofreu.
Seus pais, honestos e experientes, alertaram: não vá por esse caminho, meu filho! Não tome dos outros o que não é seu!
João não achou justo: é meu direito ter as coisas que os outros tem! E, de fato, era.
O tempo foi passando, e Paulo Ferreira se tornou um jovem simpático e gentil. Na adolescência, teve três namoradas: chorou pela perda da primeira e largou a segunda pela terceira. Fazia curso técnico a noite, tinha as tardes livres e tocava violão.
Seus pais, querendo seu melhor, recomendaram: porque não procura um estágio, para ter seu próprio dinheiro e comprar suas próprias coisas?
Paulo achou justo: é meu direito ter as coisas que os outros tem! E, de fato, era.
Estava decidido, para João, que iria dar um basta nisso tudo. Ninguém mais lhe diria o seu lugar. Não aceitaria mais que, por força do destino, estivesse condenado a viver na condição de servo. Ora essa, quem eles pensam que são? Quem disse que eu devo lhes servir? Que direito eles tem de morar na casa que meu pai construiu, de fazer minha mãe lavar suas roupas? Chega! Foi dormir com uma idéia na cabeça, a de que hoje tinha sido seu último dia de bom moço.
Com os primeiros salários, Paulo Ferreira comprou um iPhone, o celular que ele sempre quis. Depois, parcelou uma moto para ir mais rápido do estágio pro cursinho. Era elogiado pelo chefe – o menino aprende rápido! Estava pavimentando uma lenta estrada rumo à uma carreira de sucesso, a uma vida plena, fruto de seu esforço. Ia ser efetivado! Voltou para casa, cansado, leu um pouco e foi dormir, lembrando, contente, que hoje tinha sido seu último dia como estagiário.
Mas aquela sexta-feira amanheceu cinza…
Paulo acordou. Tomou seu Sucrilhos sozinho, na sala, vendo o jornal. Colocou o celular no bolso, subiu na moto e partiu para o trabalho, animado.
João acordou. Mordeu um pedaço de pão duro, nem ligou a TV. Colocou uma faca no bolso, pôs o chinelo e partiu para a cidade, com fogo ardendo em seu coração.
Nascidos no mesmo dia, e vivendo por quase vinte anos na mesma cidade, eles nunca tinham se encontrado. Mas João e Paulo nasceram um para o outro…
Suas vidas se cruzaram onde a avenida principal cruza com a rua da favela. João descia o morro a pé e Paulo vinha pela avenida, de moto. Foi então que o semáforo fechou e ele parou, bem ali, na divisa entre os dois mundos.
No mesmo instante, em uma dessas coincidências que só Deus explica, chegou João no cruzamento. Enfurecido, magoado, queimando por dentro, apontou a faca para Paulo:
– Desce da moto, playboy! Vamos, passa o celular! Vai, mano, rápido!
– Calma, pode levar! Não me machuca! – disse Paulo, assustado.
João subiu na moto de Paulo, portando seu celular. Pela primeira vez na sua vida inteira estava por cima, tinha vencido, era o mais forte. Pela primeira vez e pela última.
A adrenalina anestesiou todo seu corpo, que não sentiu quando um policial que passava, vendo o assalto, desceu do carro e lhe deu dois tiros. Um pegou na barriga e outro no ombro. Ele caiu no chão, predado, abatido, ensaguentado…
O policial se aproximou com arma apontada, chutando a faca da mão de João:
– Seu verme! E agora, quem é o espertão? – gritou, enquanto tirava o celular roubado de seu bolso.
– Obrigado, policial! – agradeceu Paulo – Esse aí vai roubar moto no inferno agora!
Paulo pegou de volta o que era seu, satisfeito com o desfecho.
A ambulância chegou rápido, mas não a tempo de salvar João. No chão, olhando para o céu pela última vez, ouviu as palavras da pequena multidão que cercava seu corpo moribundo:
– Ladrão!
– Bem feito!
– Vagabundo.
Paulo achou justo: cada um deve ter aquilo que merece! E, de fato, ele merecia as coisas que tinha.
João não achou justo: cada um deve ter a vida que merece!
E, de fato, ele não teve a vida que merecia.
* Inspirado, mas não baseado, nesse vídeo e nos tristes comentários feitos sobre ele: http://orgulhohetero.blog.br/roubo-e-frustrado-por-pm-em-sp/. O rapaz desse video sobreviveu.
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